domingo, 6 de março de 2016


VIOLÊNCIA E AGRESSIVIDADE: SUAS MANIFESTAÇÕES
                                                                      Maria Otília Bento Holz


Violência e agressividade são dois significantes que, por muito tempo, foram considerados sinônimos. Atualmente a psicanálise prima pelo discernimento de um e de outro que é caracterizado pela maneira como se manifestam.
A violência aparece numa relação interhumana enquanto à agressividade está no sujeito para com ele mesmo. A violência é força viva, com vida própria, regida pela natureza real da pulsão, é isso que não muda, que se repete em qualquer época.
“Essa vida autônoma está em cada um, desde que a linguagem cunhou o corpo com sua prensa indizível e sem sentido, forjando o traumatismo que inaugura a experiência do falasser”.[1]
É justamente quando os limites da linguagem são ultrapassados que a violência se manifesta. Então é preciso ler o que “isso” fala e o que tem a dizer. Que se encontre no dizer uma nova forma de viver a pulsão de morte.
A violência urbana crescente aponta consequências do declínio do Nome do Pai e da crescente dominação materna que faz parceria com a tecnologia científica e a medicina, cuja oferta de objetos procura suprir a função de um Outro não barrado. Esse circuito capitalista, o mais de gozar, agrega um valor a mais no objeto, e isto muda o discurso do mestre em discurso capitalista que dispensa o Outro significante, que antes apontava para um ideal; a honra, a pátria, a família e outros. Hoje a violência mostrando-se nas discórdias das linguagens, no dia a dia, numa repetição do impossível de dizer, que a partir do real sem lei, trafega nas cidades. É a violência que cada um extrai das catástrofes e desastres, vivificando o traumatismo inaugural da vida nos corpos falantes e que Lacan (1999) a nomeou como “a brutalidade opaca da vida”.
Quanto à agressividade, para o senso comum, significa no dicionário “disposição para o desencadeamento de condutas hostis, destrutivas fixadas e alimentadas pelo acúmulo de experiências frustradoras”. Para a psicanálise essa disposição que se volta para o próprio sujeito aponta para uma satisfação paradoxal.
Como a violência, a agressividade também está atrelada à pulsão de morte. Mas como entender por que nem todo mundo tem a mesma relação com a pulsão de morte?[2]A agressividade se manifesta numa experiência que é subjetiva por sua própria constituição. Ela corrói, mina, desagrega, castra e muitas vezes conduz à morte, nos diz Lacan em escritos p 107. Freud atribui essa tendência mórbida como um movimento vital. Há na agressividade uma relação específica do homem com o seu próprio corpo, referente a imagens de castração, emasculação, mutilação, desmembramento, desagregação, devoração, explosão do corpo, em suma as imagos do corpo despedaçado.[3] Imagens agressivas que atormentam os homens através dessas fixações mais arcaicas.
Por isso na periferia do “si mesmo” não reina paz e anuncia-se a presença do gozo como tal. Daí Lacan conceber o trauma como estrutural, e portador de um fator subjetivo ineliminável.[4]
Na clínica, uma vinheta.
Um caso que mostra uma cruel parceira da violência com a agressividade na mesma pessoa.
Malva é uma jovem moça, embora aparente muito mais idade, efeito da tirania a que foi submetida pela mãe. Aos 6 dias de vida, devido ao seu choro incessante a mãe, provavelmente,  sob um surto psicótico puerperal, espancou-a tanto que a empregada chamou a polícia. Malva foi levada para o hospital onde permaneceu na UTI entre a vida e a morte, acompanhada por uma tia (médica) que ficou seu lado todo tempo. A mãe foi presa por dois anos e nesse período Malva ficou sob os cuidados dos avós maternos em outra cidade. Saindo da cadeia a mãe, a pedido do pai, buscou-a. Malva, então ficou submetida aos “maltratos” maternos desde ter os pés lavados com ácido, aos 4 anos, ter o braço queimado com ferro de passar roupas, aos 11 anos e ouvir que ela não deveria ter nascido. O pai a chamava de maldição e a mãe dirigia-lhe uma série de impropérios.  A partir dos 4 anos, até aos 11 anos, Malva foi abusada sexualmente pela mãe, todas as quinta-feiras, quando o pai viajava, até o dia em que ele não viajou e flagrou a mãe em cima de Malva. Novamente a mãe foi presa e desta vez no manicômio judiciário. Malva tentou suicidar-se aos 10 e aos 15 anos quando foi internada numa clínica psiquiátrica por dois meses e meio. Lá recusava-se a tomar qualquer remédio.
Extremamente inteligente, frequenta a Universidade, com QI de 166, fala 6 idiomas. Escreve, lê e anda compulsivamente. Quando não está em crise de amnésia é lúcida, coerente e se analisa muito bem.
A agressividade de Malva aparece através de uma mutilação, onde se corta e se queima com ácido, dizendo não sentir dor. Que o seu corpo são pedaços soltos, que tudo entra. Diz que tem dois lados, um que é Malva, consciente, educada, estudiosa e outro que lhe é estranho pois faz coisas que não lembra. Malva não foi só violentada, mas também usa da violência. Mordeu a língua e deu um soco num colega na Universidade porque ele quis dar-lhe um beijo. Ao voltar a si, ele estava sangrando. Quando entra em crise, apresenta reações das mais diversas, desde irreverência, arrogância, sarcasmos. Também faz coisas que não acredita que foi ela que fez, por exemplo; desenhos artísticos, mesmo dizendo que não sabe desenhar. Passa a noite fora de casa sem saber onde foi. Tem horror ao toque, usa luvas para tomar banho. Há três anos reside em Curitiba com uma amiga e só uma vez recebeu a visita de sua irmã com o pai.




[1] Brisset, Fernanda Otoni coord. XX E BCF – arquivo do Blog 13-5-4
[2] Guilhot, Éric. Psicanalista na Bélgica – Da agressividade à pulsão de morte – Revista Aleph nº 4 p.
[3] Lacan, J. escritos . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998 p 107/108
[4] Vieira, M. A. – A violência do trauma e seu sujeito p 74/75
Algumas Considerações sobre a Psicose – da teoria à prática clínica[1]
                                                                                          Maria Otília Bento Holz [2]                                                      

                                          Para os fora-dos-discursos, mestres da linguagem[3]
                                                                                                         

Falar sobre a psicose, e mais especificamente a clínica da psicose, remete-nos à teoria de Lacan, que muito se dedicou ao estudo da psicose, sem desconsiderar primeiramente os problemas clínicos e nosográficos que a ela precederam.
A partir daí pode-se perguntar o que tem abrangido o termo psicose no domínio psiquiátrico já que a psicose não é demência. As psicoses são o que sempre se chamou de as loucuras.
Uma reflexão acerca da psicose nos remete da clínica do olhar, característica da psiquiatria, à clínica da escuta, revelando o percurso lacaniano num entendimento mais próprio à psicose.
Partindo então da psiquiatria, Lacan chega à psicanálise, indo da psicogênese ao estruturalismo e das relações de compreensão às relações simbólicas. Dos ensinamentos estruturalistas de seu mestre Clerambault à clínica universal do delírio, Lacan chega ao conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. Nessa nova abordagem, a psicose se apresenta sob outro fio condutor, que a retira de uma ótica deficitária, de um índice negativo.
O termo freudiano Verwerfung (foraclusão), é tomado por Lacan como norteador que determina a psicose e ordena os achados de Freud, dizendo que é preciso o pai para que haja em seu lugar a função fálica, ou seja, a função paterna,  que é correlata à função fálica. Essa correlação só é possível quando o complexo de Édipo e o complexo de castração retroagem sobre a teoria da psicose. Partindo do triângulo edípico pai, mãe e filho – que é uma estrutura elementar- , o pai funciona como pacificador à renúncia sucedida pela sublimação. O Édipo é a referência que se encontra no âmago da clínica da psicose. Assim, o Nome do Pai emerge como um significante. Quando o pai pacificador não opera, prevalecem a relação mãe – criança e a função do narcisismo.[4]
A transformação na clínica da psicose, valendo-se dos ensinamentos de Ferdinand Saussure, reformula a distinção entre significante e significado.
O conceito de não relação parte da distinção da disjunção entre significante e significado. A referência ao significante permanece fora do alcance, como gozo próprio do corpo e significado, como advindo do Outro.
A segunda clínica de Lacan funda-se na inexistência do Outro, no caráter não deficitário da psicose, na articulação do Sinthome e na introdução do escrito na fala do sujeito. Introduzir a dimensão da escrita na fala do sujeito é importante na clínica da escuta, pois reduz o sentido do sintoma e induz o sujeito a se virar com o seu sintoma. Daí a premissa de Lacan: “não recuar jamais diante da psicose”.
Finalmente Lacan conceitua o sintoma psicótico como Sinthome, ou seja, a intersecção entre simbólico e real por fora do imaginário. Nessa intersecção, um elemento do simbólico, não encadeado, desloca-se para o registro do real como letra.
Em seu percurso de 1930 a 1970 Lacan propõe a foraclusão generalizada, considerando que todo o sintoma tem como base um núcleo real. Assim ele reformula o conceito de estrutura a partir da topologia do nó borromeano, por meio do qual Lacan prioriza a questão do real e do gozo.[5]

A Clínica

Trata-se de relatar como foi conduzido o trabalho com uma criança de cinco anos que não fala, não olha para a analista e fica brincando no canto da sala autisticamente. Foram doze anos de intenso e diversificado trabalho. Passo a passo, no seu tempo, Igor foi adquirindo a fala, passou a olhar e a responder quando chamado. As garatujas que desenhava foram adquirindo formas e sentido.
Percorreu diversas escolas sem aprender. Somente aos quinze anos pode ser alfabetizado por um método alemão aplicado por uma psicopedagoga. Devido a um significativo atraso cultural, aos doze anos, Igor passou a ter uma acompanhante terapêutica que o ensinou  a ir para a clínica sozinho, fazer carteira de identidade, carteira de trabalho, abrir uma poupança, fazer depósito em bancos, ir para escolinha de futebol, de ginástica olímpica e de pintura. Fez também um curso para pizzaiolo e entrou em um grupo de escoteiros.
Essas atividades foram orientadas e supervisionadas pela analista, que também precisou acolher este paciente e adotá-lo no nível da potência tutelar do amor já que em casa ele sempre foi acolhido pela mãe no nível do gozo e não do desejo.
A pedido dos pais, por dificuldades financeiras, o tratamento foi interrompido aos dezessete anos de Igor, que nesse momento consegue um emprego e nele permanece até hoje, aos vinte e três anos. Após um ano, a analista chama Igor para dar continuidade à “análise”, conforme ficara combinado, mas os pais haviam-no colocado num trabalho psicopedagógico que, sendo por módulos, levaria três anos; Igor, porém só o concluiu após seis anos.
Neste caso os efeitos terapêuticos da psicanálise sobre o sujeito são evidentes; seja pela aquisição da fala e hábitos de higiene, controle dos esfincteres, seja pela alfabetização, profissionalização etc..
Lacan nos ensinou a não recuar diante da psicose[6], no caso presente não recuar diante da debilidade mental que ele comporta. Miller por sua vez diz que tudo na vida de cada um depende de como a mãe estruturou sua falta.
Essa é a questão de Igor que tem uma mãe absoluta, toda potência, e que se acha dona do filho, e que carrega inconscientemente uma culpa mortal de ter desejado abortá-lo, desistindo no caminho.
Quando Igor nasce, ela o deixa até os quatro anos na frente da TV, justificando não ter tempo para ele. Os anos passam, Igor fica cada vez mais dependente da mãe, nada fazendo sem o consentimento dela que quer que ele seja feliz. Sempre que perguntado como vai, Igor responde: “Ótimo”. O significante ótimo corresponderia a estar feliz como a mãe quer?
O pai, como Igor, mantém-se numa posição passiva. Diz que pede à esposa que “solte” Igor, mas ela não o atende. Quando perguntado por que não insiste, ele responde que dá “encrenca”, pois ela fica com o filho e ele fica de fora dessa  parceria, evidenciando o desacordo entre um homem e uma mulher.
No Seminário 11 Lacan se refere à debilidade dizendo: “a criança débil toma o lugar em relação a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo obscuro”. É assim que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico.[7]
Diante de tantas dificuldades Igor encontrou na debilidade uma saída, por meio da qual um modo específico de gozo pode se exprimir pela fórmula de um sujeito que flutua entre dois discursos: o dele e o da mãe. (Feliz / Ótimo).
Passados seis anos, a pedido da analista, Igor volta para duas entrevistas, mas se mostra resistente. Reclama da mãe que o faz colocar blusa de manga comprida quando ele não quer. Alega ainda dificuldade de tempo, dos horários dos ônibus e da chuva.
Na sequência conta que um dia ao sair do trabalho telefonou para a mãe ir buscá-lo devido a uma forte chuva que estava ameaçando, mas ela disse-lhe que tomasse o ônibus. Igor, dando ênfase na voz, disse que poderia ter morrido “naquele dia”, pois um raio / aborto quase o atingiu. Parece que ao assim se pronunciar, Igor denuncia inconscientemente, que a mãe poderia tê-lo matado, mas ele não morreu. Com isso Igor conclui algo em relação ao seu longo trabalho clínico.




[1] Este trabalho é efeito da produção de um Cartel sobre psicose iniciado em março de 2009.
[2] Psicanalista Correspondente da Delegação Paraná
[3] Quinet, Antônio – Psicose e laço social – pag. 5 RJ: Jorge Zahar Ed. 2006
[4] Harari, A.- Clínica Lacaniana da Psicose RJ: Contra Capa Livraria, 2006, pags. 11 a 14
[5] Harari, A. idem PP 30 a 32
[6] Lacan, Jacques. O Seminário Livro 3 Psicose Zahar Editora RJ 1979
[7] Lacan, Jacques. O Seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise p. 225 Zahar Editora RJ 1979


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A TRANSFERÊNCIA

                                                                                                Maria Otília Bento Holz

            Com Freud a transferência nasce como um conceito novo, pois é a psicanálise que o formaliza. Inicialmente Freud (1888) se refere à transferência como sendo uma mudança do sintoma histérico de um lado para outro do corpo, um deslocamento. Cada vez mais, ele reforça sua constatação de que a cura estava na recuperação da relação simbólica entre a causa precipitante do trauma e o fenômeno patológico. No tratamento a linguagem substituía a ação, e a emoção podia ser ab-reagida. Assim Freud avança na busca do deciframento do sintoma.
            Em Estudos sobre Histeria (1895), a transferência  recebe nova acepção, passando a ser considerada não mais como uma ligação deslocada, mas como a tendência de o paciente envolver o analista no trabalho, de tal modo, até que apresentasse um caráter perturbador com o surgimento do amor transferencial.
            Esse apaixonamento do paciente pelo analista cria dificuldades técnicas no atendimento. Freud observa que quando se trata psicanaliticamente um paciente neurótico, surge nele um estranho fenômeno chamado transferência, ou seja, o paciente consagra ao analista sentimentos afetuosos ou hostis não justificados em relações reais.
            Em 1912, Freud escreve o texto Dinâmica da Transferência, dedicado ao exame teórico do que acontece na relação transferencial. Inicia dizendo que o ser humano é produto de fatores inatos e das experiências infantis. E que ambos propiciam a aquisição de um estilo de vida, como um clichê estereotípico.
            O sucesso do trabalho terapêutico está em poder contar com a colaboração do paciente quanto a seguir as regras analíticas. Assim, o analista poderá dar novo significado transferencial (Übertragungsbedeutung) a todos os sintomas da doença. A neurose comum do paciente é então substituída por uma neurose de transferência que possibilita a cura.
            A neurose de transferência é uma neurose artificial que se constitui em torno da relação com o analista. É uma nova edição da neurose clínica. A elucidação da neurose de transferência mostra uma revivência da neurose infantil.
            Os fenômenos da transferência nos neuróticos parecem mostrar, pela compulsão à repetição, um destino cruel, implacável, ao qual essas pessoas estão submetidas. Para a psicanálise, tal destino resulta, em grande parte, da posição em que elas se colocam na vida e das influências infantis primitivas. Isso acarreta que as pessoas lidem da mesma maneira com as mais diversas situações, encontrando um mesmo denominador comum: seja uma ingratidão, seja uma injustiça, seja um desamor, enfim, algo que as decepcione como um dia em criança também aconteceu.
            No texto Análise Terminável e Interminável (1937), Freud questiona o poder da transferência. Que a influência do analista sobre o paciente tenha sido tão marcante que as mudanças ficam garantidas, mostrando com isso um êxito absoluto no trabalho. Será isso possível? Podemos falar de desfechos bem-sucedidos, nos quais os distúrbios neuróticos foram aclarados e não retornaram, nem foram substituídos por outras perturbações do mesmo tipo. Nesses casos sabemos que o sucesso alcançado deveu-se ao fato de o ego do paciente não ter sido demasiadamente alterado e a origem do distúrbio ter sido mais traumática que pulsional, embora se tenha presente que a etiologia de todo distúrbio neurótico é mista. Freud atribui a alteração desfavorável do ego à luta defensiva diante das intempéries da vida.
            É pela transferência que conseguimos nos aliar ao ego da pessoa em tratamento e incluir nele partes do id que ainda não estão controladas. Mas para isso teríamos que contar com um ego normal o que não é fácil, pois as pessoas só são normais na média.
            No manejo da transferência, vamos ter que lidar com as alterações do ego, entendendo-as como um desvio quanto à ficção de um ego normal que facilitaria o trabalho de análise. Freud considera que é no paciente que está o saber sobre sua verdade e é pela relação transferencial que ele, paciente, pode ter acesso a essa verdade.
            Todas essas dificuldades têm na sua base o mesmo denominador comum: o fenômeno da transferência permeado por características de um amor primevo e da busca constante de satisfação.
            É a partir da leitura de Freud que Lacan inicia uma nova jornada de trabalho e questionamentos sobre a psicanálise, em particular sobre a transferência e a posição do analista em seu manejo, desde a função de sujeito suposto saber (SsS).
            Miller (2006) fala de muitos sujeitos suposto saber. O analisante é o nosso primeiro sujeito suposto saber – o que ele traz até nós. Damos a palavra. O próprio analista é o segundo SsS – suposto a interpretar. Aí a importância da introdução do analisante na associação livre, mediante a qual a fala vem enlaçar-se ao gozo. Esse não sei o que digo, por meio da associação livre, implica a posição de inconsciente como potência de cifração – terceiro SsS. É o inconsciente intérprete que se transfere para o analista. Isso é tomar a transferência como transferência de saber (inconsciente transferêncial).
            Para Lacan, é na comunicação de inconscientes que deveríamos apostar. É ela que permite ao analista apercepções decisivas e lhe proporciona boas condições para o trabalho e não a longa experiência do analista nem seu conhecimento teórico.
            O analista é aquele para quem o paciente fala livremente, embora essa fala não seja tão livre assim. Essa liberdade desemboca numa fala plena que lhe seria dolorosa, pois falaria da sua verdade. “Nada mais temível do que dizer algo que possa ser verdadeiro. Pois logo se transformaria nisso, se o fosse, e Deus sabe o que acontece quando alguma coisa por ser verdadeira, já não pode recair na dúvida” (Lacan, 1966).
            A palavra guarda em si um engodo. Como então situar os afetos e as referências imaginárias em relação a ela, quando se define a ação da transferência na análise? E nada mais difícil do que o acosso dos fenômenos transferenciais que geram resistências.
            Lacan se refere à questão do analisante perante o analista – “O que ele quer?” (Che vuoi?) –, evidenciando a transferência do lado do analista, abrindo um questionamento sobre a contratransferência.
            No conceito comum, contratransferência seria a soma dos preconceitos, das dificuldades, dos embaraços, das emoções, da falta de formação do analista a um dado momento do processo dialético.
            Lacan critica as várias posições a respeito da contratransferência, inclusive aquela que considera uma nova partida. Esta diz respeito ao objeto a, o agalma do qual o analista é o portador e que enlaça a transferência no amor. O agalma, esse objeto brilhante, está carregado de um peso de símbolos e trocas. O agalma, esse objeto fundamental de que se trata na análise do sujeito e que constitui a fantasia fundamental, instaura o lugar onde o sujeito pode se fixar como desejante. Na verdade, para Lacan, uma contra-indicação seria aquela em que o analista colocaria, por um instante, seu próprio objeto parcial, seu agalma, no paciente. Isso seria uma contratransferência.
            A transferência em psicanálise teria seu efeito mediante o ato do analista a partir da inspiração da pulsão em se fazer falar desde esse lugar no Outro. É o que sai do corpo em busca de uma resposta? (E a única resposta possível se dá por meio do significante.)
            Lacan fala desse ponto de encontro com o real, o vazio do sujeito referido ao objeto perdido das Ding, isso que não pode ser dito nem reencontrado, embora sempre buscado. É um ponto que escapa de qualquer influência que a análise possa exercer sobre o analisante. Há outra coisa em das Ding, é um verdadeiro segredo em relação ao princípio de realidade. O princípio de realidade funciona como que isolando o sujeito da realidade.
            É isso que a biologia mostra, que o ser vivo é regido por um processo de homeostase, de isolamento em relação à realidade. O sujeito é determinado por esse des Lebens (estado de urgência da vida). Alguma coisa quer. Daí a questão da sugestão, algo que no paciente é sugerido “(...) alguma coisa tria, cria, de tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma profundamente escolhida” (Lacan, 1959 / 60:63).
            A presença do passado, realidade da transferência, é algo que por si só se impõe. Pode-se dizer que é uma presença em ato uma reprodução que nos leva a concluir que existe na manifestação da transferência algo criador.
            Em seu seminário (1991) sobre a transferência, Antonio Di Ciccia refere-se a três vertentes da transferência: transferência imaginária, simbólica e real. A transferência imaginária é um obstáculo à cura, e Lacan questiona até que ponto ela entra nas condições pelas quais é possível uma psicanálise.
         Para Lacan, em seu primeiro ensino, a transferência no simbólico é um fator de cura. Ele a coloca em paralelo à repetição. Uma repetição que é da ordem simbólica em relação às figuras parentais ou substitutas.
            A transferência real é referida por Lacan como a aposta em ato da realidade do inconsciente. Na transferência em relação ao real, o analista encarnará um lugar inteiramente específico e único para o analisante. A isso poderíamos chamar de mistérios da transferência – de se oferecer à interpretação mais do que oferecer-se a interpretar. O analista encontra-se proscrito a assumir a função de presença.

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FREUD, S. (1910) Transferência e Resistência, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XI.
___________ (1912) A Dinâmica da Transferência, E.S.B.,v. XII.
___________ (1916) Transferência (Conferência XXVII), E.S.B.,v.XVI.
___________ (1920) Revisão da Teoria das Pulsões, E.S.B., v.XVIII.
___________ (1937) Análise terminável e interminável, E.S.B., v.XXIII.
LACAN, J.    (1964) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, O Seminário, livro 11, Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1979.
MILLER, J. A.(1984) Percurso de Lacan – Uma Introdução. Rio de Janeiro, Zahar Ed., 1988.
___________(2006) Nosso Sujeito Suposto Saber – Opção Lacaniana nº 47. Rio de Janeiro, Ed. Eólia, 2006.

DI CIACCIA, Antônio. Seminário: A Transferência. in Letras da Coisa. Curitiba: Coisa Freudiana, 1992.


VIOLÊNCIA E AGITAÇÃO DOS CORPOS, POR ONDE “ISSO” PASSA?

                                                                           Maria Otília Bento Holz[1]



“O corpo e suas agitações: como estas últimas impulsam a fala que, como nos ensina Lacan, não se restringe de modo algum à verbalização, tampouco a um uso propriamente funcional. Usos do corpo para fazer falar falar-se... e o silêncio dos corpos...” [2]

Referir-se à agitação do corpo é referir-se à pulsão e seus efeitos, como bem mostram alguns versos da música de Chico Buarque: O que será (À flor da pele)

O que será que me dá

Que me bole por dentro, será que me dá

O que não tem medida, nem nunca terá

O que não tem remédio, nem nunca terá

O que não tem receita

O que será que será

O que não tem descanso, nem nunca terá

O que não tem limite, nem nunca terá

O que não tem vergonha, nem nunca terá

O que não tem governo, nem nunca terá

O que não tem juízo.



Freud nomeia a pulsão (Trieb) como uma energia que quer sempre se satisfazer, custe o que custar. Pulsão, conceito limite para dar conta daquilo que o sujeito experimenta como impulso incontrolável. No seu polimorfismo a pulsão pode manifestar-se desde a ordem do prazer até a agressividade e a violência. A violência como sintoma social da época são maneiras pelas quais se vive a pulsão de morte teorizada por Freud, em 1920, e que se declina em ódio, segregação, destruição, num gozo ilimitado. É o perigo do Real como afluxo incontrolável de estímulos.[3]





A violência de hoje é considerada uma nova ordem simbólica que evidencia uma desordem do real. É uma violência privada, individualizada, contingente do individualismo em massa.[4]

A violência pode produzir-se no próprio sujeito pelo uso indiscriminado de drogas, alcoolismo, automutilação, suicídio etc., ou em uma relação inter-humana quando não prevalece a fala. Quando disparada a violência, é impossível reprimi-la, pois não se encadeia à articulação significante, atingindo uma dimensão real. A cocaína leva à excitação, a essa vida que vai além da vida do corpo, conduzindo-o a uma agitação sem rumo. O craque é ainda pior porque produz efeitos imediatos ao entrar no circuito sanguíneo. No alcoolismo, a autoviolência parece como um suicídio disfarçado. Encontramos ainda novas experiências do que é o insuportável das manifestações da pulsão de morte. Existem formas mais efetivas de autoviolência como enforcar-se, atirar-se na frente de um trem.[5]

Lacan (1970) aborda a violência em relação à ascensão do objeto a ao zênite social. O objeto a passou a ser a bússola da civilização de hoje, comandando o discurso hipermoderno. Resultado do enfraquecimento da autoridade paterna, pois o Nome do Pai não é mais capaz de sustentar uma regulação simbólica o que incidiu sobre os modos de gozo da família. A taxa de violência contra as crianças e os abusos sexuais pedofílicos inclui a violência praticada pelos próprios pais ou seus substitutos.[6]

O que chamamos de feminização do mundo é a manifestação da ausência de exceção, seja a exceção paterna, seja a exceção dada pela função fálica, o que Lacan chamou de uma ordem de ferro, em que impera a ferocidade do supereu, que exige o máximo de gozo para todos.

A atualidade nos mostra que os fenômenos de violência estão vinculados às falhas do simbólico, à sua precariedade. Nos impasses da cultura surgem os novos reais dos quais o discurso da civilização hipermoderna nos dá testemunho. Testemunho este também evidenciado no comportamento sexual humano ao conservar parte do semblante animal, com a diferença que esse semblante se veicula num discurso.

Nos limites do discurso (...), de vez em quando, “existe o real”, nos diz Lacan.

E “isso” pode ser chamado de passagem ao ato que rompe com o Outro e a violência aparece em seus diferentes tipos, como a violação, o femicídio, o vandalismo, entre outros; maneiras pelas quais uma época vive a pulsão de morte. São sujeitos em que a passagem ao ato é uma constante. Como alguém que sob o efeito da droga ou álcool pode exercer uma violência extrema, desbordada, podendo até matar o seu semelhante. Por isso, no mundo atual temem-se o roubo, a bala perdida, e a violência passa a ser fruto de uma contingência que aponta para a voracidade da pulsão, para um gozo que escapa à lógica fálica;[7] como bem nos diz Marcelo Veras.

Como consequência disso tudo, o sujeito fica situado numa debilidade para qual a psicanálise deverá responder, não o deixando sob os cuidados apenas do social, sanitário e jurídico, pois ao sustentar um furo no saber, dá ao sujeito a chance de construir seu próprio saber. A psicanálise apontaria a real dimensão do estrago.



Vitor e a violência contra si mesmo.

Esta vinheta aponta para um homem de mais de trinta anos, solteiro, que ainda mora com a mãe. Tem um filho pequeno que não mora com ele.

Vitor é filho de mãe solteira com um homem casado, alcoolista. Foi criado pela mãe e avós maternos, pois moravam juntos. Chamava de pai o avô, que também bebia.

Aos onze anos Vitor começou sua vida noturna, indo a festinhas e bebendo cerveja. Cresceu no meio de adultos, parentes e amigos, que bebiam e se drogavam. Mais tarde ele passou a fazer o mesmo. A vida de Vitor centrou-se numa constante autoviolência. Foi preso por tráfico de drogas, acidentou-se várias vezes por dirigir alcoolizado, frequentava e permanecia dias nos prostíbulos, onde deixava o seu dinheiro. Em tudo que fazia tinha o respaldo da mãe, que pagava as dívidas dele e lhe dava dinheiro para se drogar. A melhor autentificação para o alcoolista e drogado, desta “mal-dita” pulsão, é o imperativo sem lei desse Outro, onipotente, insaciável, a bombear o gozo do corpo, que é tomado por uma constante agitação.[8]



[1] Psicanalista, Mestre em Psicologia Escolar com área de concentração em Psicanálise, Correspondente da Delegação Paraná da EBP.
[2] Comentário de Jésus Santiago, Ram Mandil e Sérgio Laia. Responsáveis pelo Seminário de Leitura do Curso de Orientação Lacaniana – Sede da EBP-MG (07 a 13/10/2013).
[3] Vieira, M. A. (2013) A violência: sintoma social da época. A violência do trauma e seu sujeito, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.81
[4] Alvarenga, E. (2013) A violência: sintoma social da época. Apresentação, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.09. 
[5] Laurent, É. (2013)  A violência: sintoma social da época. Entrevista:”Psicanálise violência: sobre as manifestações da pulsão de morte”, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.37.
[6] Marotta, M. (2011) A Ordem Simbólica do Século XXI. Não é mais o que era. Quais as consequências para o tratamento. Silicet. Violência VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, AMP. Escola Brasileira de Psicanálise. Editora Scriptum, p.415/416

[7] Veras, M. (2013) A violência: sintoma social da época. Atualidades lacaniana, a violência entre o grande Outro e o objeto. Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.107. 
[8] Lecoeur (1992), B. O Homem Embriagado. Centro Mineiro de Toxicomania – FHEMIG, Belo Horizonte, MG, p.12.