Algumas Considerações sobre a Psicose – da teoria à prática clínica[1]
Maria Otília Bento Holz [2]
Falar sobre a
psicose, e mais especificamente a clínica da psicose, remete-nos à teoria de
Lacan, que muito se dedicou ao estudo da psicose, sem desconsiderar
primeiramente os problemas clínicos e nosográficos que a ela precederam.
A partir daí
pode-se perguntar o que tem abrangido o termo psicose no domínio psiquiátrico
já que a psicose não é demência. As psicoses são o que sempre se chamou de as
loucuras.
Uma reflexão
acerca da psicose nos remete da clínica do olhar, característica da psiquiatria,
à clínica da escuta, revelando o percurso lacaniano num entendimento mais
próprio à psicose.
Partindo então
da psiquiatria, Lacan chega à psicanálise, indo da psicogênese ao
estruturalismo e das relações de compreensão às relações simbólicas. Dos
ensinamentos estruturalistas de seu mestre Clerambault à clínica universal do
delírio, Lacan chega ao conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. Nessa nova abordagem, a psicose se
apresenta sob outro fio condutor, que a retira de uma ótica deficitária, de um
índice negativo.
O termo
freudiano Verwerfung (foraclusão), é
tomado por Lacan como norteador que determina a psicose e ordena os achados de
Freud, dizendo que é preciso o pai para que haja em seu lugar a função fálica,
ou seja, a função paterna, que é
correlata à função fálica. Essa correlação só é possível quando o complexo de Édipo
e o complexo de castração retroagem sobre a teoria da psicose. Partindo do
triângulo edípico pai, mãe e filho – que é uma estrutura elementar- , o pai
funciona como pacificador à renúncia sucedida pela sublimação. O Édipo é a
referência que se encontra no âmago da clínica da psicose. Assim, o Nome do Pai
emerge como um significante. Quando o pai pacificador não opera, prevalecem a
relação mãe – criança e a função do narcisismo.[4]
A transformação
na clínica da psicose, valendo-se dos ensinamentos de Ferdinand Saussure,
reformula a distinção entre significante e significado.
O conceito de não relação parte da distinção da disjunção entre
significante e significado. A referência ao significante permanece fora do
alcance, como gozo próprio do corpo e significado, como advindo do Outro.
A segunda
clínica de Lacan funda-se na inexistência do Outro, no caráter não deficitário
da psicose, na articulação do Sinthome e na introdução do escrito na fala do
sujeito. Introduzir a dimensão da escrita na fala do sujeito é importante na
clínica da escuta, pois reduz o sentido do sintoma e induz o sujeito a se virar
com o seu sintoma. Daí a premissa de Lacan: “não recuar jamais diante da
psicose”.
Finalmente Lacan
conceitua o sintoma psicótico como Sinthome, ou seja, a intersecção entre
simbólico e real por fora do imaginário. Nessa intersecção, um elemento do
simbólico, não encadeado, desloca-se para o registro do real como letra.
Em seu percurso
de 1930 a
1970 Lacan propõe a foraclusão generalizada, considerando que todo o sintoma
tem como base um núcleo real. Assim ele reformula o conceito de estrutura a
partir da topologia do nó borromeano, por meio do qual Lacan prioriza a questão
do real e do gozo.[5]
A Clínica
Trata-se de
relatar como foi conduzido o trabalho com uma criança de cinco anos que não
fala, não olha para a analista e fica brincando no canto da sala
autisticamente. Foram doze anos de intenso e diversificado trabalho. Passo a
passo, no seu tempo, Igor foi adquirindo a fala, passou a olhar e a responder
quando chamado. As garatujas que desenhava foram adquirindo formas e sentido.
Percorreu
diversas escolas sem aprender. Somente aos quinze anos pode ser alfabetizado por
um método alemão aplicado por uma psicopedagoga. Devido a um significativo
atraso cultural, aos doze anos, Igor passou a ter uma acompanhante terapêutica
que o ensinou a ir para a clínica
sozinho, fazer carteira de identidade, carteira de trabalho, abrir uma
poupança, fazer depósito em bancos, ir para escolinha de futebol, de ginástica
olímpica e de pintura. Fez também um curso para pizzaiolo e entrou em um grupo
de escoteiros.
Essas atividades
foram orientadas e supervisionadas pela analista, que também precisou acolher
este paciente e adotá-lo no nível da potência tutelar do amor já que em casa
ele sempre foi acolhido pela mãe no nível do gozo e não do desejo.
A pedido dos
pais, por dificuldades financeiras, o tratamento foi interrompido aos dezessete
anos de Igor, que nesse momento consegue um emprego e nele permanece até hoje,
aos vinte e três anos. Após um ano, a analista chama Igor para dar continuidade
à “análise”, conforme ficara combinado, mas os pais haviam-no colocado num
trabalho psicopedagógico que, sendo por módulos, levaria três anos; Igor, porém
só o concluiu após seis anos.
Neste caso os
efeitos terapêuticos da psicanálise sobre o sujeito são evidentes; seja pela
aquisição da fala e hábitos de higiene, controle dos esfincteres, seja pela alfabetização,
profissionalização etc..
Lacan nos
ensinou a não recuar diante da psicose[6], no
caso presente não recuar diante da debilidade mental que ele comporta. Miller
por sua vez diz que tudo na vida de cada um depende de como a mãe estruturou
sua falta.
Essa é a questão
de Igor que tem uma mãe absoluta, toda potência, e que se acha dona do filho, e
que carrega inconscientemente uma culpa mortal de ter desejado abortá-lo,
desistindo no caminho.
Quando Igor
nasce, ela o deixa até os quatro anos na frente da TV, justificando não ter
tempo para ele. Os anos passam, Igor fica cada vez mais dependente da mãe, nada
fazendo sem o consentimento dela que quer que ele seja feliz. Sempre que
perguntado como vai, Igor responde: “Ótimo”. O significante ótimo
corresponderia a estar feliz como a mãe quer?
O pai, como Igor,
mantém-se numa posição passiva. Diz que pede à esposa que “solte” Igor, mas ela
não o atende. Quando perguntado por que não insiste, ele responde que dá
“encrenca”, pois ela fica com o filho e ele fica de fora dessa parceria, evidenciando o desacordo entre um
homem e uma mulher.
No Seminário 11
Lacan se refere à debilidade dizendo: “a criança débil toma o lugar em relação
a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num
termo obscuro”. É assim que se introduz na educação do débil a dimensão do
psicótico.[7]
Diante de tantas
dificuldades Igor encontrou na debilidade uma saída, por meio da qual um modo
específico de gozo pode se exprimir pela fórmula de um sujeito que flutua entre
dois discursos: o dele e o da mãe. (Feliz / Ótimo).
Passados seis
anos, a pedido da analista, Igor volta para duas entrevistas, mas se mostra resistente.
Reclama da mãe que o faz colocar blusa de manga comprida quando ele não quer. Alega
ainda dificuldade de tempo, dos horários dos ônibus e da chuva.
Na sequência
conta que um dia ao sair do trabalho telefonou para a mãe ir buscá-lo devido a
uma forte chuva que estava ameaçando, mas ela disse-lhe que tomasse o ônibus. Igor,
dando ênfase na voz, disse que poderia ter morrido “naquele dia”, pois um raio /
aborto quase o atingiu. Parece que ao assim se pronunciar, Igor denuncia
inconscientemente, que a mãe poderia tê-lo matado, mas ele não morreu. Com isso
Igor conclui algo em relação ao seu longo trabalho clínico.
[1] Este
trabalho é efeito da produção de um Cartel sobre psicose iniciado em março de
2009.
[2]
Psicanalista Correspondente da Delegação Paraná
[3] Quinet,
Antônio – Psicose e laço social – pag. 5 RJ: Jorge Zahar Ed. 2006
[6] Lacan,
Jacques. O Seminário Livro 3 Psicose Zahar Editora RJ 1979
[7] Lacan,
Jacques. O Seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
p. 225 Zahar Editora RJ 1979
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