domingo, 6 de março de 2016

Algumas Considerações sobre a Psicose – da teoria à prática clínica[1]
                                                                                          Maria Otília Bento Holz [2]                                                      

                                          Para os fora-dos-discursos, mestres da linguagem[3]
                                                                                                         

Falar sobre a psicose, e mais especificamente a clínica da psicose, remete-nos à teoria de Lacan, que muito se dedicou ao estudo da psicose, sem desconsiderar primeiramente os problemas clínicos e nosográficos que a ela precederam.
A partir daí pode-se perguntar o que tem abrangido o termo psicose no domínio psiquiátrico já que a psicose não é demência. As psicoses são o que sempre se chamou de as loucuras.
Uma reflexão acerca da psicose nos remete da clínica do olhar, característica da psiquiatria, à clínica da escuta, revelando o percurso lacaniano num entendimento mais próprio à psicose.
Partindo então da psiquiatria, Lacan chega à psicanálise, indo da psicogênese ao estruturalismo e das relações de compreensão às relações simbólicas. Dos ensinamentos estruturalistas de seu mestre Clerambault à clínica universal do delírio, Lacan chega ao conceito de foraclusão do Nome-do-Pai. Nessa nova abordagem, a psicose se apresenta sob outro fio condutor, que a retira de uma ótica deficitária, de um índice negativo.
O termo freudiano Verwerfung (foraclusão), é tomado por Lacan como norteador que determina a psicose e ordena os achados de Freud, dizendo que é preciso o pai para que haja em seu lugar a função fálica, ou seja, a função paterna,  que é correlata à função fálica. Essa correlação só é possível quando o complexo de Édipo e o complexo de castração retroagem sobre a teoria da psicose. Partindo do triângulo edípico pai, mãe e filho – que é uma estrutura elementar- , o pai funciona como pacificador à renúncia sucedida pela sublimação. O Édipo é a referência que se encontra no âmago da clínica da psicose. Assim, o Nome do Pai emerge como um significante. Quando o pai pacificador não opera, prevalecem a relação mãe – criança e a função do narcisismo.[4]
A transformação na clínica da psicose, valendo-se dos ensinamentos de Ferdinand Saussure, reformula a distinção entre significante e significado.
O conceito de não relação parte da distinção da disjunção entre significante e significado. A referência ao significante permanece fora do alcance, como gozo próprio do corpo e significado, como advindo do Outro.
A segunda clínica de Lacan funda-se na inexistência do Outro, no caráter não deficitário da psicose, na articulação do Sinthome e na introdução do escrito na fala do sujeito. Introduzir a dimensão da escrita na fala do sujeito é importante na clínica da escuta, pois reduz o sentido do sintoma e induz o sujeito a se virar com o seu sintoma. Daí a premissa de Lacan: “não recuar jamais diante da psicose”.
Finalmente Lacan conceitua o sintoma psicótico como Sinthome, ou seja, a intersecção entre simbólico e real por fora do imaginário. Nessa intersecção, um elemento do simbólico, não encadeado, desloca-se para o registro do real como letra.
Em seu percurso de 1930 a 1970 Lacan propõe a foraclusão generalizada, considerando que todo o sintoma tem como base um núcleo real. Assim ele reformula o conceito de estrutura a partir da topologia do nó borromeano, por meio do qual Lacan prioriza a questão do real e do gozo.[5]

A Clínica

Trata-se de relatar como foi conduzido o trabalho com uma criança de cinco anos que não fala, não olha para a analista e fica brincando no canto da sala autisticamente. Foram doze anos de intenso e diversificado trabalho. Passo a passo, no seu tempo, Igor foi adquirindo a fala, passou a olhar e a responder quando chamado. As garatujas que desenhava foram adquirindo formas e sentido.
Percorreu diversas escolas sem aprender. Somente aos quinze anos pode ser alfabetizado por um método alemão aplicado por uma psicopedagoga. Devido a um significativo atraso cultural, aos doze anos, Igor passou a ter uma acompanhante terapêutica que o ensinou  a ir para a clínica sozinho, fazer carteira de identidade, carteira de trabalho, abrir uma poupança, fazer depósito em bancos, ir para escolinha de futebol, de ginástica olímpica e de pintura. Fez também um curso para pizzaiolo e entrou em um grupo de escoteiros.
Essas atividades foram orientadas e supervisionadas pela analista, que também precisou acolher este paciente e adotá-lo no nível da potência tutelar do amor já que em casa ele sempre foi acolhido pela mãe no nível do gozo e não do desejo.
A pedido dos pais, por dificuldades financeiras, o tratamento foi interrompido aos dezessete anos de Igor, que nesse momento consegue um emprego e nele permanece até hoje, aos vinte e três anos. Após um ano, a analista chama Igor para dar continuidade à “análise”, conforme ficara combinado, mas os pais haviam-no colocado num trabalho psicopedagógico que, sendo por módulos, levaria três anos; Igor, porém só o concluiu após seis anos.
Neste caso os efeitos terapêuticos da psicanálise sobre o sujeito são evidentes; seja pela aquisição da fala e hábitos de higiene, controle dos esfincteres, seja pela alfabetização, profissionalização etc..
Lacan nos ensinou a não recuar diante da psicose[6], no caso presente não recuar diante da debilidade mental que ele comporta. Miller por sua vez diz que tudo na vida de cada um depende de como a mãe estruturou sua falta.
Essa é a questão de Igor que tem uma mãe absoluta, toda potência, e que se acha dona do filho, e que carrega inconscientemente uma culpa mortal de ter desejado abortá-lo, desistindo no caminho.
Quando Igor nasce, ela o deixa até os quatro anos na frente da TV, justificando não ter tempo para ele. Os anos passam, Igor fica cada vez mais dependente da mãe, nada fazendo sem o consentimento dela que quer que ele seja feliz. Sempre que perguntado como vai, Igor responde: “Ótimo”. O significante ótimo corresponderia a estar feliz como a mãe quer?
O pai, como Igor, mantém-se numa posição passiva. Diz que pede à esposa que “solte” Igor, mas ela não o atende. Quando perguntado por que não insiste, ele responde que dá “encrenca”, pois ela fica com o filho e ele fica de fora dessa  parceria, evidenciando o desacordo entre um homem e uma mulher.
No Seminário 11 Lacan se refere à debilidade dizendo: “a criança débil toma o lugar em relação a esse algo a que a mãe a reduz a não ser mais que o suporte de seu desejo num termo obscuro”. É assim que se introduz na educação do débil a dimensão do psicótico.[7]
Diante de tantas dificuldades Igor encontrou na debilidade uma saída, por meio da qual um modo específico de gozo pode se exprimir pela fórmula de um sujeito que flutua entre dois discursos: o dele e o da mãe. (Feliz / Ótimo).
Passados seis anos, a pedido da analista, Igor volta para duas entrevistas, mas se mostra resistente. Reclama da mãe que o faz colocar blusa de manga comprida quando ele não quer. Alega ainda dificuldade de tempo, dos horários dos ônibus e da chuva.
Na sequência conta que um dia ao sair do trabalho telefonou para a mãe ir buscá-lo devido a uma forte chuva que estava ameaçando, mas ela disse-lhe que tomasse o ônibus. Igor, dando ênfase na voz, disse que poderia ter morrido “naquele dia”, pois um raio / aborto quase o atingiu. Parece que ao assim se pronunciar, Igor denuncia inconscientemente, que a mãe poderia tê-lo matado, mas ele não morreu. Com isso Igor conclui algo em relação ao seu longo trabalho clínico.




[1] Este trabalho é efeito da produção de um Cartel sobre psicose iniciado em março de 2009.
[2] Psicanalista Correspondente da Delegação Paraná
[3] Quinet, Antônio – Psicose e laço social – pag. 5 RJ: Jorge Zahar Ed. 2006
[4] Harari, A.- Clínica Lacaniana da Psicose RJ: Contra Capa Livraria, 2006, pags. 11 a 14
[5] Harari, A. idem PP 30 a 32
[6] Lacan, Jacques. O Seminário Livro 3 Psicose Zahar Editora RJ 1979
[7] Lacan, Jacques. O Seminário Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise p. 225 Zahar Editora RJ 1979

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