VIOLÊNCIA
E AGITAÇÃO DOS CORPOS, POR ONDE “ISSO” PASSA?
Maria Otília Bento Holz[1]
“O corpo e suas
agitações: como estas últimas impulsam a fala que, como nos ensina Lacan, não
se restringe de modo algum à verbalização, tampouco a um uso propriamente
funcional. Usos do corpo para fazer falar falar-se... e o silêncio dos
corpos...” [2]
Referir-se à
agitação do corpo é referir-se à pulsão e seus efeitos, como bem mostram alguns
versos da música de Chico Buarque: O que
será (À flor da pele)
O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita
O que será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem limite, nem nunca terá
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo.
Freud nomeia a
pulsão (Trieb) como uma energia que quer sempre se satisfazer, custe o que
custar. Pulsão, conceito limite para dar conta daquilo que o sujeito experimenta
como impulso incontrolável. No seu polimorfismo a pulsão pode manifestar-se
desde a ordem do prazer até a agressividade e a violência. A violência como
sintoma social da época são maneiras pelas quais se vive a pulsão de morte
teorizada por Freud, em 1920, e que se declina em ódio, segregação, destruição,
num gozo ilimitado. É o perigo do Real como afluxo incontrolável de estímulos.[3]
A violência de
hoje é considerada uma nova ordem simbólica que evidencia uma desordem do real.
É uma violência privada, individualizada, contingente do individualismo em
massa.[4]
A violência pode
produzir-se no próprio sujeito pelo uso indiscriminado de drogas, alcoolismo,
automutilação, suicídio etc., ou em uma relação inter-humana quando não
prevalece a fala. Quando disparada a violência, é impossível reprimi-la, pois
não se encadeia à articulação significante, atingindo uma dimensão real. A
cocaína leva à excitação, a essa vida que vai além da vida do corpo,
conduzindo-o a uma agitação sem rumo. O craque é ainda pior porque produz
efeitos imediatos ao entrar no circuito sanguíneo. No alcoolismo, a
autoviolência parece como um suicídio disfarçado. Encontramos ainda novas
experiências do que é o insuportável das manifestações da pulsão de morte. Existem
formas mais efetivas de autoviolência como enforcar-se, atirar-se na frente de
um trem.[5]
Lacan (1970)
aborda a violência em relação à ascensão do objeto a ao zênite social. O
objeto a passou a ser a bússola da civilização de hoje, comandando o
discurso hipermoderno. Resultado do enfraquecimento da autoridade paterna, pois
o Nome do Pai não é mais capaz de sustentar uma regulação simbólica o que
incidiu sobre os modos de gozo da família. A taxa de violência contra as
crianças e os abusos sexuais pedofílicos inclui a violência praticada pelos
próprios pais ou seus substitutos.[6]
O que chamamos de
feminização do mundo é a manifestação da ausência de exceção, seja a exceção
paterna, seja a exceção dada pela função fálica, o que Lacan chamou de uma
ordem de ferro, em que impera a ferocidade do supereu, que exige o máximo de
gozo para todos.
A atualidade nos
mostra que os fenômenos de violência estão vinculados às falhas do simbólico, à
sua precariedade. Nos impasses da cultura surgem os novos reais dos quais o
discurso da civilização hipermoderna nos dá testemunho. Testemunho este também
evidenciado no comportamento sexual humano ao conservar parte do semblante
animal, com a diferença que esse semblante se veicula num discurso.
Nos limites do
discurso (...), de vez em quando, “existe o real”, nos diz Lacan.
E “isso” pode ser
chamado de passagem ao ato que rompe com o Outro e a violência aparece em seus
diferentes tipos, como a violação, o femicídio, o vandalismo, entre outros; maneiras
pelas quais uma época vive a pulsão de morte. São sujeitos em que a passagem ao
ato é uma constante. Como alguém que sob o efeito da droga ou álcool pode
exercer uma violência extrema, desbordada, podendo até matar o seu semelhante. Por
isso, no mundo atual temem-se o roubo, a bala perdida, e a violência passa a
ser fruto de uma contingência que aponta para a voracidade da pulsão, para um
gozo que escapa à lógica fálica;[7] como bem nos diz Marcelo
Veras.
Como consequência
disso tudo, o sujeito fica situado numa debilidade para qual a psicanálise
deverá responder, não o deixando sob os cuidados apenas do social, sanitário e
jurídico, pois ao sustentar um furo no saber, dá ao sujeito a chance de
construir seu próprio saber. A psicanálise apontaria a real dimensão do
estrago.
Vitor e a
violência contra si mesmo.
Esta vinheta
aponta para um homem de mais de trinta anos, solteiro, que ainda mora com a
mãe. Tem um filho pequeno que não mora com ele.
Vitor é filho de
mãe solteira com um homem casado, alcoolista. Foi criado pela mãe e avós
maternos, pois moravam juntos. Chamava de pai o avô, que também bebia.
Aos onze anos
Vitor começou sua vida noturna, indo a festinhas e bebendo cerveja. Cresceu no
meio de adultos, parentes e amigos, que bebiam e se drogavam. Mais tarde ele passou
a fazer o mesmo. A vida de Vitor centrou-se numa constante autoviolência. Foi
preso por tráfico de drogas, acidentou-se várias vezes por dirigir alcoolizado,
frequentava e permanecia dias nos prostíbulos, onde deixava o seu dinheiro. Em
tudo que fazia tinha o respaldo da mãe, que pagava as dívidas dele e lhe dava
dinheiro para se drogar. A melhor autentificação para o alcoolista e drogado,
desta “mal-dita” pulsão, é o imperativo sem lei desse Outro, onipotente,
insaciável, a bombear o gozo do corpo, que é tomado por uma constante agitação.[8]
[1]
Psicanalista,
Mestre em Psicologia Escolar com área de concentração em Psicanálise,
Correspondente da Delegação Paraná da EBP.
[2]
Comentário
de Jésus Santiago, Ram Mandil e Sérgio Laia. Responsáveis pelo Seminário de
Leitura do Curso de Orientação Lacaniana – Sede da EBP-MG (07 a 13/10/2013).
[3] Vieira, M. A. (2013) A violência: sintoma social da época. A
violência do trauma e seu sujeito, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum,
p.81
[4]
Alvarenga,
E. (2013) A violência: sintoma social da
época. Apresentação, Belo Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.09.
[5]
Laurent, É.
(2013) A violência: sintoma social da época. Entrevista:”Psicanálise
violência: sobre as manifestações da pulsão de morte”, Belo Horizonte, MG. EBP.
Editora Scriptum, p.37.
[6]
Marotta, M.
(2011) A Ordem Simbólica do Século XXI.
Não é mais o que era. Quais as consequências para o tratamento. Silicet.
Violência VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, AMP. Escola
Brasileira de Psicanálise. Editora Scriptum, p.415/416
[7] Veras, M. (2013) A violência: sintoma social da época.
Atualidades lacaniana, a violência entre o grande Outro e o objeto. Belo
Horizonte, MG. EBP. Editora Scriptum, p.107.
[8]
Lecoeur (1992), B. O Homem Embriagado.
Centro Mineiro de Toxicomania – FHEMIG, Belo Horizonte, MG, p.12.
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